segunda-feira, 19 de maio de 2008

CAPÍTULO 14 - O REINO DE DEUS NÃO É TEORIA

“O Reino de Deus não é teoria nem malabarismos religiosistas, sectários e idólatras.”

Nascido em terras européias, chegou ao Brasil e se empregou no comércio; aos vinte e três anos casou-se e aos trinta e um tornou-se o proprietário da casa comercial onde estivera servindo como bom empregado.
Comprava e vendia, penhorava, executava, tinha articulações com elementos os mais esquisitos do contrabando marítimo; e assim a fortuna foi aumentando, enquanto lia e relia muito bons livros espiritualistas.
Verdadeiramente, meteu-se a escrever um livro, e de fato escreveu-o, ficando a vida toda a retocá-lo, sem nunca mandá-lo ao prelo; e se tivesse feito, teria êxito, porque a matéria era excelente; como tanta gente tem feito, viver aos cambulhões, metida nas patifarias do mundo, mas escrevendo bem para os outros, ele também o teria feito. Porque a dificuldade não está no saber, mas sim no realizar.
Ninguém vive isolado, todos precisam de sociedade, porque nada no Universo se basta; tudo e todos, em qualquer grau da escala dos valores, precisam de ter o que circunde, para baixo e para cima, para os lados, e que contribua com os seus valores intrínsecos.
Ao que ficaria reduzido o mais importante dos homens, se lhe tirasse Deus os três elementos mais simples: o solo debaixo dos pés, o sol que lhe dá calor e as energias e o ar que respira? E se disso não é ele, o homem, o fabricante, em que é ele realmente grande?
Ora, longa seria a série das misérias humanas, se fôssemos focalizar o homem à margem dos desígnios de Deus, que a tudo fez e a tudo sustenta e determina, colocando o homem no seio de Sua Obra. Todavia, a própria pequenez humana faz com que ele, o homem, não enxergue o tamanho de suas limitações.
E por ser assim, pensa ele na imensidão do Cosmo, mas dá-se bem vivendo com o seu mísero egoísmo, entre as imundícies do ambiente. Deus e a Verdade, a Moral e o Amor, merecem muitas atenções teóricas, mas o bolso, o estômago, o sexo, o orgulho e o egoísmo, estão rentes à vida, reclamam atenções imediatas. Portanto, é muito mais fácil bancar o tolerante, o paciente, do que fazer como Jesus fez, que foi precisamente o contrário!
O nosso irmão Pureza de Jesus, grande ledor de grandes livros, foi um espécime comum da fauna à qual pertencemos; ele sabia, mais do que muitos outros, que o Reino do Céu está dentro de cada um de nós; porém, como tantos de nós, sentia muito mais a presença dos interesses subalternos, razão por que sufocava os brados do Reino do Céu.
E foi assim que, no seu qüinquagésimo sétimo aniversário, estava acamado, sentindo fortes pontadas no peito. Se ninguém morre de saúde, mas de desastre ou de doença, o irmão Pureza de Jesus deixou o mundo carnal embalado pela angina do peito, sem completar os sessenta anos.
Há um estado ótimo para tudo e para todos, que entretanto varia ao infinito, considerando a infinita variedade dos homens e dos elementos; e foi assim que, em seguida à grande perda, a muito chorada perda, aos poucos a situação voltou ao estado ótimo. Viúva e filhos, muito bem postados na vida, foram desenvolvendo os seus respectivos dramas.
Ano e meio após o desencarne do irmão Pureza de Jesus, o estado de saúde de sua filha Maria começou a passar por algum desequilíbrio. Teve início, então, a ronda pelos consultórios médicos. De dentro de suas respectivas honorabilidades e especialidades, os médicos foram trabalhando, tratando da jovem Maria. Mas os sintomas foram tomando outros rumos, razão por que um dos médicos achou conveniente mandar a enferma ao doutor Bezerra de Menezes.
O médico espírita, como de costume, sujeitou o caso aos seus amigos do mundo espiritual; e foi então que começamos o trabalho de retirada e de orientação do irmão Pureza de Jesus, que por falta de pureza, por falta de sentimentos cristãos postos em prática, ingressara no mundo espiritual em condições de plena cegueira, perambulando pelo recinto familiar, onde o prendiam as mentes queridas, vindo por fim a encostar definitivamente na jovem filha, cujas faculdades passivas lhe deram oportunidades.
Bezerra deu à jovem, a medicação precisa para a sua recuperação física, pois o fenômeno de vampirismo estava caracterizado; e os mentores espirituais trataram de conduzir o irmão Pureza de Jesus para o local de reconhecimento do estado e aprendizado necessários.
Antes de mais nada, fizeram-no passar pelo sono reparador; depois de acordado, fizeram-no falar:
— Então, irmão Pureza de Jesus, como vão as coisas? – perguntou-lhe o bondoso médico do mundo espiritual, sem dizer-lhe de outras realidades.
Pureza de Jesus olhou pelos arredores do vasto pavimento, perguntando:
— Sem dúvida estou hospitalizado... Eu sabia que isso iria se alongar por muito tempo... Mas creio que perdi a consciência, que dormi muito...
O médico falou-lhe, entressorrindo e ponderando:
— E se desencarnasse?
Pureza de Jesus fitou-o longamente, perguntando:
— Isso não é para quem encarnou, doutor?
— Sim, mas em que paragens do mundo espiritual estaria, a estas horas?
Pureza de Jesus encolheu os ombros, dizendo:
— Bem, eu sou espiritualista... Tenho até um livro a ser editado... Mas a Deus é que cumpre determinar tudo, não é?
O médico emendou:
— A parte de Deus é Eterna, Perfeita e Imutável; isto é, Deus rege tudo através de leis. Portanto, cada filho recebe segundo como dá. Quem dá mais para a Verdade e a Virtude, tanto melhor; e quem dá menos, tanto menos terá. De uma realidade, porém, devemos nos capacitar: em Deus não prevalecem particularismos.
Satisfeito, o irmão Pureza de Jesus perguntou-lhe:
— Também é espiritualista?
— Eu sou espírita, mas não em função de tendências, paixões ou sectarismo algum a ser alimentado; sou da Verdade que vale por si mesma, sem ser pelo crivo dos conceitos humanos.
Pureza de Jesus, cada vez mais satisfeito, renovou a pergunta:
— Leu muitos livros, doutor?
Assentindo com breve inclinação de cabeça, disse o doutor:
— Sem dúvida! Como não reconhecer o imenso trabalho dos livros? Não é nos livros que a humanidade armazena o extrato das conquistas custosamente conseguidas? Porém, irmão Pureza de Jesus, uma coisa é sujeitar os livros à VERDADE e outra coisa pretender sujeitar a VERDADE aos livros.
— Compreendo perfeitamente! – aparteou o acamado irmão.
E o médico informou-o:
— Então saiba que desencarnou...
Pureza de Jesus estremeceu, olhou ao redor, arregalou os olhos, quis falar e não conseguiu.
— Por que não fecha os olhos e endereça ao Pai Divino uma oração de agradecimento? – aconselhou o médico, colocando a mão direita sobre a testa do irmão Pureza de Jesus.
Bem se viu que a intenção do acamado não era essa; ele queria alegar umas tantas coisas; mas o médico advertiu-o, com severa bondade:
— Peço que respeite, irmão, o desígnio de Deus... Nenhuma alegação poderia agora prevalecer...
Pureza de Jesus derramou lágrimas a valer; mas uma vez refeito, indagou:
— Quantas horas faz, doutor?...
O médico respondeu:
— Isso não importa... Mas faz alguns meses. E agora vai levantar-se, para dar uma voltinha pelos nossos jardins. Não é assim?
— Posso?! – perguntou, admirado.
— Deve! – respondeu o médico, auxiliando-o a pôr-se de pé.
A seguir nos entregou o irmão Pureza de Jesus, desejando-lhe felicidade e breve ingresso em campo de serviços
Já no jardim, observando a beleza, sentindo essa imensa felicidade que não é possível transmitir ao papel, perguntou ele:
— O Céu! Que Céu é este?
Tancredo falou-lhe:
— Uma das primeiras faixas depois das trevas... Deve compreender que os Sete Céus se subdividem em dezenas e dezenas de subcéus. Ora, como em torno do Planeta estão umas faixas umbrosas, depois delas começam as luminosas... Estamos numa das primeiras, apenas...
— Mas é maravilhoso!... – exclamou, observando as flores, as águas, as gentes que transitavam, etc.
Tancredo esclareceu:
— Que diria então, dos reinos superiores?
— Conhece-os? – perguntou, sequioso de resposta.
O instrutor volveu:
— Poucos acima disto conheço e de visita muito breve; mas sei de reinos que jamais deles poderia eu dizer coisa alguma, tal a glória que manifestam.
Pureza de Jesus olhou bem para todos nós, perguntando:
— São todos espíritas?
Tocou minha vez de falar:
— O Espiritismo é a restauração do Consolador, da Excelsa Doutrina que o Divino Mestre deixou no mundo, em seguida ao Pentecoste, ao Seu Batismo de Espírito. Tem por fundamento a Moral, o Amor, a Revelação, a Sabedoria e a Virtude. E eu pergunto ao irmão se está vendo em nós isso tudo em plena evidência, em total manifestação.
O irmão Pureza de Jesus calou-se, porque não quis dizer o que pensou; mas voltei ao assunto, com inteira consciência da realidade:
— Dia virá em que seremos todos espíritas! Jesus nos espera com os braços abertos e o Nosso Pai Divino sempre nos oferece os meios de progredir.
Pureza de Jesus ficou a meditar; seu olhar perdeu-se na vastidão florida de nossa região, tendo-o acordado dessa meditação o nosso Tancredo, ao dizer-lhe:
— Recupere-se, para que logo possa estar em trabalhos...
— Bem, bem!... – fez ele, volvendo a sentir-se feliz – Que trabalho poderei fazer eu?
Tancredo apontou para dentro ou para baixo, ou para o centro, avisando-o:
— O Espiritismo é a revolução nos termos da Lei de Deus! Assim como Jesus Cristo foi o exemplo da Lei em execução, assim terá que vir a ser a humanidade, mais tarde ou mais cedo. Apronte-se para o trabalho junto aos irmãos encarnados, porque Maria, sua filha, está com sua mediunidade em tempo de manifestação. Dois dos seus plexos estão manifestamente dilatados...
Outra vez Pureza de Jesus caiu em pranto, mas agora de alegria intensa. Nós todos o abraçamos e ele prometeu tornar-se um digno servidor de Jesus.
Mais tarde, quando dentro da casa em que Bezerra fazia sessões, e já tendo ordem de comunicar pela filha, Pureza de Jesus comentou, vendo algumas entidades que conhecera na vida carnal:
— Não fui apenas eu que andei falando muito e fazendo pouco... Vejo aqui dentro alguns conhecidos, gente que pensei ser melhor do que eu, mas que vejo em situação nada melhor do que a minha!
Tancredo lembrou-lhe:
— É bem difícil alijar de nós as paixões e tendências sectárias; porém é muito mais difícil alijar de nós as muitas mediocridades. Se é certo que não existe religião alguma que seja igual à Verdade e à Virtude, também é certo que em muitos outros pontos, nada fazemos para sermos humanamente melhores, apenas humanamente melhores. Portanto, vamos chegar perto, cada vez mais perto dos procedimentos de Jesus, Ele que tratou de viver a Lei, ela que é acima de religiões, porque é paralela à Verdade e à Virtude!
Pureza de Jesus exclamou, cismado:
— A Verdade e a Virtude!...
Tancredo retornou à Chave Mestra:
— Sim, como faremos para realizar em nós a Verdade e a Virtude, sem prezar na prática a Moral e o Amor?
Agora Pureza de Jesus perguntou, revelando dúvida:
— O Amor é fácil de entender, porque filtra-se pela Bondade, que o dinamiza; mas a Moral implica em contrastes. Não acha que é assim?...
— Muito bem! – aparteou Tancredo – Como acertaria as questões?
Pureza de Jesus comentou:
— Fiz questão de ler muito, para saber pelo menos um pouco; e tive pela frente, sempre, os pólos em contraposição. O Cristo, por exemplo, que mandou perdoar setenta vezes sete vezes; que Se ofereceu em sacrifício total; que pronunciou o Sermão da Montanha; que, enfim, foi o Amor vivido, Ele mesmo mandou não atirar dádivas aos cães e aos porcos, Ele mesmo mandou atirar contra os rebeldes até o pó das alparcas, Ele mesmo mandou pôr fogo na cabeça dos adversários através da oração feita em favor deles. Ele mesmo teve para com os clérigos, para com as autoridades temporais, para com os fariseus e saduceus as mais terríveis invectivas. Como poderemos acertar, como disse, tudo isso?
Tancredo falou-lhe:
— O Amor não exclui a Justiça; e como Cristo é Verbo de Deus ou Delegado de Deus, junto aos irmãos menores em processo evolutivo, cumpre lembrar que Ele foi, a um tempo, o Amor e a voz da Justiça. De Jesus Cristo haviam dito os Profetas:

“Senta-te à minha direita, até que eu faça de teus inimigos o estrado de teus pés.”

Tudo isso, irmão Pureza de Jesus, para assinalar com que poderes delegados o Cristo age na direção planetária; e foi por assim saber que Jesus sentenciou, em face da humanidade:

“Aquele que se esbater contra esta rocha, rebentar-se-á; e aquele sobre quem ela cair, será esmigalhado.”

Lembre-se, pois, irmão, que o Cristo é a Síntese Geral, é a um tempo a Moral e o Amor, a Verdade e a Virtude, as Lei e a Justiça. O capítulo vinte e dois do Apocalipse define-O com inteireza de Autoridade, porque como Intermediário do Pai, fá-Lo aparecer como distribuidor de Amor e Justiça.
— Conseqüentemente... – ia emendar o irmão Pureza de Jesus, quando Tancredo continuou, satisfeito:
— Conseqüentemente! Justamente isso, irmão Pureza de Jesus, o Cristo é o Amor e a Justiça de Deus, a um tempo aplicados, segundo o merecimento de cada um; e por isso mesmo, fala de Amor aos bondosos e fala de trevas e infernos aos rebeldes e malévolos. Não há contradição no Cristo, mas sim nos homens; e se você encontrar contradição nos escritos, lembre-se de que Jesus não escreveu, tendo ainda os escritos passado por mãos de quem tinha ignorância a encobrir e interesses subalternos a defender.
— Justamente... – foi outra vez apartear o irmão Pureza de Jesus, mas o nosso instrutor Tancredo continuou, veemente:
— Justamente, sim senhor! Resta ainda que lhe diga que o Evangelho é a Lei que Jesus viveu, sendo testemunho da Moral, do Amor, da Revelação, da Sabedoria e da Virtude. Portanto, irmão, faça cada um dessas cinco palavras o seu programa de vida, se quiser ascender ao Grau Crístico o quanto antes. Porque, se ficar apenas em conversas e mais conversas, terá que cair no ramerrão dos religiosismos, disso tudo que falando muito em Deus, na Verdade e no Cristo, vive remetendo legiões de criaturas aos abismos de pranto e ranger dos dentes.
Pureza de Jesus fitou-o bem, indagando:
— Então, assim é?
E Tancredo retornou, afirmando:
— Procure, nos planos de mais luz e de mais Glória, quem adore a Deus e a Jesus, o Seu representante, sem ser através de trabalhos amorosos. Porque a Onipresença de Deus e do Seu Cristo é evidente em tudo e em todos, e o que todos devem fazer é cooperar no grandioso trabalho do Amor. Repare, por exemplo, naquilo que se passa aqui dentro. Procure a inteligência do movimento.
E como dentro daquela casa espírita, daquela escola, encarnados e desencarnados tudo quanto faziam era ensinar a Verdade e a Virtude, Tancredo repetiu:
— Veja que trabalhão junto a irmãos ignorantes e rebeldes! Entretanto, tudo resume na afirmação de um Emanador, de uma Lei de Harmonia e da Suprema Força, que é o Amor!
— Exatamente! – exclamou o irmão Pureza de Jesus, entusiasmado.
Tancredo, entretanto, doutrinou mais uma vez:
— Cada centelha de Deus tem em si mesma, em potencial, a Verdade e a Virtude; cada uma deve a si mesma o trabalho de manifestação ou desabrochamento; e no Espaço e no Tempo, através dos mundos e das vidas, enfrentando condições e situações, terá mesmo que desabrochar, até atingir o Grau Crístico. Este Grau é o Libertador, porque significa vencer a Lei das reencarnações obrigatórias. E foi por isso, falando desse Grau, que Jesus afirmou que era o Caminho, a Verdade e a Vida! Isto é, a Síntese Geral perfeitamente revelada.
Pureza de Jesus sorriu, abanou a cabeça e lastimou:
— Então, irmão Tancredo, a coisa está mal figurada para muitos espíritas e espiritualistas... Porque ficam criando ranço e ferrugem em torno do pouco que sabem, ficam falando muito em termos apenas sectários, enquanto que a realidade, por aqui, demonstra uma Verdade que é absolutamente acima de paixões e de tendências religiosistas. Tenho notado que todos pedem a graça do trabalho, a sagrada oportunidade de servir, de fazer algum bem a algum irmão que precisa!
Tancredo abraçou-o, dizendo:
— Parabéns! Você chegou depressa onde eu queria; pois entendendo que Deus quer filhos cooperadores da Sua Divina Obra, tudo está fielmente encaminhado. Aquele que vê e sente o Emanador nos fundamentos da chamada Criação, em qualquer tempo e local procura servir a seus irmãos, trabalhando para que desabrochem a Verdade e a Virtude que trazem dentro de si mesmos. Eis o supremo trabalho, para que possam conquistar as supremas glórias!
Pureza de Jesus estava jubiloso, tendo dito:
— Agora sei por que o Cristo não ficou tecendo futricas com os fariseus e sacerdotes, escribas e saduceus; agora sei por que o expulsaram do templo e o perseguiram, até prendê-Lo e matá-Lo; é que o Cristo nada tinha com os formalismos religiosistas ou idólatras, tendo tudo com a grandiosa obra da Verdade e da Virtude, da Moral e do Amor, tudo isso em aplicações sociais imediatas, em trabalhos feitos a irmãos menores, simples e diretos, completamente à margem de quaisquer simulações!
Bezerra encerrava o trabalho, por essas alturas, tendo cada chefe de caravana chamado os seus para os devidos encaminhamentos; a Veneranda Irmã Maria, que do alto do cone de Luz guiava ou patronizava os trabalhos, derramou sobre todos a sublime candura do seu maternal Amor, deixando todos livres.

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