terça-feira, 6 de maio de 2008

CAPÍTULO 1 - TOMÁS DE TORQUEMADA

“E todo aquele que vos matar, pensará estar prestando um bom serviço a Deus” – Jesus.

Corria o ano de 1490. A mão fanática e assassina de Tomás de Torquemada infundia terror às gentes de Espanha, porque o Santo Ofício funcionava desenfreado e infernal, remetendo ao mundo das almas, depois dos mais cruéis martírios, milhares e milhares de filhos de Deus. Como simples questões de cisma pudessem levar as mais notáveis criaturas ante o Santo Ofício, bem assim como a ausência de cisma algum, contanto que outros interesses convenientes à Igreja Católica o determinassem, eis que em todos os corações havia muito lugar para os mais temíveis prognósticos.

Se para alguns o problema consistia em ser herético, fosse lá pelo que fosse, para outros o problema estava cingido ao simples fato de ter posses ou posições que fossem desejadas pelos senhores do Santo Ofício. Em nome do purismo religioso caudais de lágrimas corriam, antes que viesse correr o sangue ou antes que as labaredas tostassem milhares de corpos.

A máquina infernal do Santo Ofício funcionava perfeitamente, organizadamente, estando suas peças e engrenagens estendidas aos mais distantes rincões da Espanha; afora a gente superior e diretamente autorizada, outros havia que funcionavam a bem de mais afastados servidores da forja de terrores. Os interesses eram tantos e de tal modo se haviam tornado complexos, por causa da multidão de objetivos pessoais, que elementos da mesma infernal maquinação se encontravam e mutuamente se espionavam, sem terem disso a menor idéia.

Eu, Leonor, simples camareira de abastadíssima família, fora induzida a funcionar a bem dos tentáculos infernais, em parte por amedrontamento e em parte em função de melhor posição social. De tal modo as coisas se foram passando, progredindo, avolumando, que em pouco tempo meus felizes amos estavam envolvidos nas malhas do Santo Ofício, terrivelmente culpados, tendo aparecido até mesmo fartos documentos comprovantes de culpa, documentos que, bem sabia eu, foram totalmente forjados.

E depois de estarem os elementos visados e dentro das garras do Santo Ofício, acusados com aquela montante imensa e tenebrosa de escritos culposos, quem iria dizer alguma coisa em contrário? E mesmo que uma voz se levantasse, de que adiantaria, sem ser para jogar essa mesma voz contra a máquina usurpadora e sanguinária?

As fogueiras eram o final de um longo processo de tortura; muitas vezes foram rogadas pelo amor de Deus, para dar fim a um longo e desesperador programa de maceração geral. Pelo menos, depois de alguns momentos de tortura cruel, soaria como verdadeira carta de alforria.

Meus amos foram aprisionados, sujeitos a forçadas respostas e seus bens foram confiscados; Deus, o Cristo e a Igreja Católica foram os instrumentos usados pelos sanguinários e perversos elementos do Santo Ofício, para que milhares de inocentes se tornassem culpados, roubados e ferozmente assassinados.
Minha participação foi a princípio por medo, mas de pouco em pouco já não era assim, porque uma onda, não sei de que tenebrosas províncias do meu ser, manifestou-se com arrebatadora violência, tornando-me a mais fiel e compenetrada de todas as defensoras da causa inquisitorial.

Os porões e os corredores, os pavimentos de reclusão e as celas, por certo que marcaram por ali a minha passagem, agora transformada em alguém que era temida ao extremo. A Igreja Católica devia ser acima de tudo rica e poderosa, ainda que tudo no mundo findasse. Como diziam seus representantes máximos, um só Poder devia reinar, sobre almas, corpos e bens materiais; entretanto, que ninguém o soubesse, até que tudo se consumasse, para não alertar imperadores, reis e príncipes, a fim de que não houvesse, da parte dos mesmos, atitudes que pudessem comprometer os intentos da Igreja.

Ninguém e nada mais me impunham medo e respeito; nenhuma atitude, por mais escabrosa que fosse, causava-me o menor resquício de remorso; subordinar o mundo à Igreja era o que desejavam Deus e Jesus Cristo, sendo portanto justos todos os recursos postos em prática. E posso afirmar que os superiores, mergulhados naquelas infernais maldades e sangueiras, nutriam pelos servidores cruéis um carinho especial, fazendo perante outros, menos extremados em seus atos de maldade, rasgadas e empolgantes referências.

Quem quisesse ficar bem com os senhores do Santo Ofício, que praticasse as mais terríveis sevícias naqueles que habitavam os calabouços imundos, cheios de bichos, excrementos e mortos já fedorentos. Ter os tacões das botinas manchados de sangue ou pigmentados de massa encefálica era um documento de recomendação perante os superiores, porque atrás de tudo aquilo estavam as posses e as posições sociais daquela gente, tudo convertido em riquezas para a Igreja.

E, sem dúvida alguma, Deus e Jesus Cristo, a Virgem e os Apóstolos, todos estariam maravilhados com aquelas demonstrações de fidelidade religiosa. Assim é que afirmavam os nossos mandatários, e assim é que nos dizia a consciência tremendamente corrompida, transformada em vastíssima caudal de martírios e mortos.

De uma realidade, porém, estávamos todos conscientes – a Igreja Católica Apostólica Romana se estava impondo, crescia em fortunas imensas, devendo estar em breve a reinar sobre todas as almas, todos os corpos e todos os bens terrenos!

E assim as coisas foram correndo, até o dia em que vi, estarrecida, uma parente minha entre os componentes de um grupo que dava entrada nos porões imundos. Como simples empregada, por que estaria envolvida naquelas malhas, entre os que eram citados como traidores da Igreja? E que poderia eu fazer, para conseguir sua liberdade?

Meditando algumas horas, antes de agir, julguei ser o ideal valer-me das amizades que julgava ter; sim, que julgava ter, porque realmente nada tinha, visto como a resposta do homem escolhido fora terminante:

— Minha filha, somente a Igreja é aqui autoridade. Seja grande, enfrente a sua função de frente, para jamais traí-la sob qualquer pretexto. Nada mais tenho a lhe dizer, e sei perfeitamente que a senhora sabe disso.

Aquela parenta, que me criara, por haver falecido minha mãe quando eu tinha apenas sete anos, era para todos os efeitos minha mãe; e por que motivo, sendo apenas uma empregada, agora envelhecida sob o peso dos anos e dos muitos sofrimentos, devia entrar para aqueles mortíferos tratamentos?

Saí de diante do meu chefe como que embriagada; tonta, pernas bambas, coração oprimido, fui chorar dentro de um compartimento sanitário, o lugar onde se podia ter alguma certeza de não haver sombras espiãs. Porque de tal modo as coisas se passavam, que uns aos outros se desconfiavam de vida e morte. E aquele que tivesse a infelicidade de ser apanhado em suspeita, para efeito de disciplina sobre quantos pudessem saber do caso, seria eliminado prontamente, sem ter tempo para alegar direito algum de defesa. Que todos ficassem, pois, alertas contra o menor vestígio de suspeita.

Aquela noite foi terrível, porque tive de enfrentar a realidade da tragédia em plena consciência. Tive febre, gritei, fiz com que duas companheiras de quarto não pudessem dormir. E no terceiro dia, frente ao médico, não era capaz de sustentar-me de pé.

— Convém chamar o padre Marcial – disse o médico, vendo-me naquele estado e sabendo em parte o que ocorria.
Quando padre Marcial chegou, o médico levou-o a um canto, nada tendo eu ouvido da conversa havida entre ambos. Recebi uma palmadinha do padre na testa, acompanhada de uma efusiva gratidão pelos serviços prestados à Santa Madre Igreja.
Saí carregada e fui colocada num leito que fora colocado em um quartinho escuro, no fim de um corredor sombrio. Disseram-me que estaria livre de ruídos e se foram. Dentro de minutos, vinha uma companheira com um bule e me fazia tomar um pouco de amargo líquido. Era, disse-me, um grande calmante nervoso. Dormiria e acordaria melhor, porque o meu mal era esgotamento, produto de ingentes esforços desenvolvidos em prol da Causa Sagrada.

Dormi, realmente, muitas horas a fio; mas acordei tendo pela frente o tremendo drama que minha consciência vivia. O semblante de minha segunda mãe não saía de minha frente, olhava-me com aquela ternura com que me criara. Revivia os dias da infância, da juventude, sempre envolvida pelos seus cuidados maternais. E como podia estar ali, num porão imundo, entregue a tantos sofrimentos? Por que, ó Deus, pensava eu e tornava a pensar, aquela santa mulher devia estar ali e naquelas condições, daquele modo e para aqueles fins?!

Bem sabia que a família fora envolvida nas malhas do Santo Ofício, cujos terrificantes olhos se voltavam, muito mais para os bens e as posições de milhares de pessoas, do que mesmo para as questões religiosas. E se a família estava nas garras sanguinárias do Santo Ofício, quem seria ela, quem seria eu, para libertar alguém ou se libertar?

Muitas vezes cheguei a pensar que devia estar de fato realizando alguma coisa a bem de Deus, ao defender os interesses da Santa Madre Igreja; de tal modo a mecânica infernal me conspurcara a consciência, que cheguei a me julgar uma servidora fiel do Céu; mas agora, frente à minha segunda mãe ali trancafiada, sujeita àquelas mortíferas brutalidades, tinha a mais plena certeza de que tudo aquilo eram crimes e mais crimes acumulados, coisas de homens gananciosos, infernalmente entregues ao serviço das trevas.

A febre aumentou, a noite foi passada em sobressaltos e o médico, no dia seguinte, abanou a cabeça pesarosamente.

— Assim, minha filha, você não vai... Precisa reagir, precisa ter coragem.

Também abanei a cabeça, mas sem dizer nada, porque a minha fala seria um decreto de morte. De modo algum poderia concordar com a estada ali de minha segunda mãe, naquelas condições; e de modo algum eles me fariam essa obra de misericórdia. O Santo Ofício teria, querendo, milhares de servidores fiéis; mas os inocentes não poderiam ter um, sequer, de modo algum.

— Tome um pouco de chá, durma e coma bastante – disse-me o médico – porque você está a se enfraquecer muito depressa. É apenas uma questão de depressão nervosa, nada mais; porém, se não cuidar de si reagindo, terminará mal.

Veio o bule, veio muita comida, veio a mais terrível noite daquela hedionda existência!

No dia seguinte, padre Marcial visitou-me, apresentando seus pêsames pelo estado em que me encontrara; todavia, com ares piegas, salientou que meu lugar estava garantido no Céu, pela severidade com que me dedicara à defesa da Santa Madre Igreja.

— Quem – disse ele – com todas as forças de sua alma se desliga dos infantis laços do mundo, para se ligar à grandeza da Santa Madre Igreja, certamente está com o lugar garantido entre os bem aventurados do Senhor!
Quando saiu, deixou-me a certeza de um nunca mais voltar a me ver; o breve sorriso, acompanhado daquela erguida de olhos, sentenciou a minha saída, para sempre, daquele intrincado e tenebroso meio. E eu, com aquele tremendo peso sobre a alma, concordei em que seria o melhor a acontecer.

Foi uma expectativa cruel, saber que seria envenenada; mas tinha a certeza de que, acima de tudo, era melhor findar de repente, do que ser torturada nos porões imundos, para findar comida pelos vermes e parasitos. E aqui vos falo hoje, que tudo aquilo foram nonadas, em face do que posteriormente aconteceu.

Nenhum comentário:

Arquivo do blog