quarta-feira, 11 de junho de 2008

ASSIM ACONTECERA

Assim de fato acontecera — Ana, a querida esposa, depois de meses de tormentosa doença
mental, encaminhando-se ao penhasco que montava divisa lá nos confins da fazenda, bem lá nos
fundões onde também desaguava certo riacho, por ele se lançara, indo perder--se por entre as águas
em revoluteio, nunca mais se tendo dela notícia.
Não mais se lhe podia sondar os passos, porque noite e dia era aquele andarilhar sem fim,
falar sozinha, discursar, afrontar, contender, para logo mais cair em dolorosa quebrantura moral,
angustiosa prostração de corpo e alma. Vivia livre, à vontade, pois de si nunca demonstração dera
de que pudesse um dia fazer o que fez ou tornar--se perigosa. Aos quinze meses de tormenta,
cauterizados todos na dor, não mais se lhe davam atenção, sem ser a respeito daquilo que lhe
dissesse comer, vestir, higienizar-se.
Quanta amargura, meus Deus! De lembrar se me enfronha a alma no negror das brumas que
a memória teima em reviver fazendo que meus olhos de espírito se marejem. Mas se assim foi,
contemo-lo então, ainda que sob o pélago de torturas cruciantes. Afinal, não sei de quem tenha
vivido alheio ao manto de grilhões os mais félicos. E não seria eu, é claro, o primeiro em favor de
quem abrisse a vida direito ímpar de precedência.
Os anos lá se vão, ou nós por eles, e com isso o feliz desembargo; Ana, hoje, meiga e amiga,
refeita em face das leis superiores, ou em face de si mesma, o que é mais exato, marca tempo nos
serviços de socorro, ora espargindo aquelas dádivas que o Pai Comum nos lança em mãos, ora
extraindo de si, de suas experiências, o com que ofertar lições a irmãos ainda viajores de
primordiais caminhadas pelos sendeiros da consciência individual. Bem faz quem aproveita as
dores bem curtidas! Convertê-las em jóias da alma pelas lições que encerram, eis o único mérito de
sofrer. Fora isso, favas à dor! E se por inteligência, puder alguém esquecer-se de que tal monstro
existe, tanto melhor.
Enquanto isso, enxugo meu pranto... Bem se vê que percorro caminhos por legiões e legiões
de irmãos já percorridos. Enxugo meu pranto e prossigo narrando, porque para isso fui chamado,
por aqueles que do Senhor Planetário mais vizinhos são, por evolvimento, e que, por isso mesmo,
dando guarida a Seus Desígnios, em favor do Consolador prometido, buscam ofertar todos os
testemunhos, para que um dia, o mais cedo possível, a face obumbrada da Terra se apresente com
rasgos de claridade que jamais tenham fim.
Meus dias então, depois que Ana desaparecera no turbilhão das águas, transformaram-se em
programa de horror a sorver. Chego a pensar, ainda, como os terei suportado! E diz-me qualquer
coisa à consciência, que se não fora a benção das amizades astrais, em, serviço de tutela, também
teria sucumbido. É certo que, ao cabo de ano e meio a contar da triste jornada, as luzes do céu se me
foram tornando próximas e pródigas em contatos sublimes e suavizantes; mas, até então, como terei
suportado o azedo de tamanho cálice?! ...
Sabe Deus o que é de justiça.
E por assim ser, por ser de justiça, sangrei os pés nos calhaus abismais, tirei de mim o que
parecia não ter, venci um tempo e consegui enfrentar-me, mais tarde, sem ter de que me
envergonhar. Eu devia e tinha de pagar... Havia semeado a dor em seara alheia, havia conspurcado
o lar alheio, dera-me em outros tempos a causar horrores e loucura.
Eu e Ana, em vida anterior, sendo responsáveis por dois lares, tendo sobre o que pesar com
as atitudes menos elegantes, nem por isso nos demos a respeitar o que manda o espírito da Lei;
abandonando os respectivos lares, deixamos de um lado uma mãe e dois filhinhos e de outro um pai
e seis rebentos, todos entregues ao mar das incertezas e aos aguilhões do desespero. Afronta e
opróbrio foi a farta semeadura de nossos dias! E como não ter de pagar? Já disse alguém que é fácil,
cômodo e aparentemente respeitável, praticar um ato material e ofertá-lo a Deus, à guisa de religião.
Com isso chegar a sentir desobrigada a própria função de obrigação espiritual. Mas, quem disse que
o Céu pediu isso? Quem foi que serviu a Deus, colocando ofertas materiais em lugar de ações
decentes?
Fosse espiritualidade o ato de oferta material, e eis que os abismos não teriam a que
instância judiciária prestar serviço! Contivesse regular soma de respeito o fato de estarmos de
acordo com o próprio modo de pensar, quando cremos em doações exteriores, e todos os
paganismos de todos os tempos teriam feito a emancipação do espírito que transita há centenas de
milhares de anos pelas brenhas da terra sólida e pelos vales das regiões astrais. No entanto, felizes,
bem felizes, somente aqueles que se valeram da senha única — o amor no trato para com os seus
irmãos de jornada.
Sou disso testemunha cem por cento. Esqueci o dever para com o meu lar, abandonando
mulher e filhos, sem contudo deixar ao léu das cogitações a dobragem de joelhos diante de altares e
outras contrições do menu litúrgico. Dizia para comigo, que todo homem tem direito a um tanto de
cauda, conquanto não implique isso em abandono das coisas da fé. Mas assim não determina a
Ordem Suprema. E não tendo força de Lei o que é feito pelo homem à revelia da Lei, só tinha de
fato de esbarrar nas próprias ações. E esbarrei de maneira violenta! Foi um tranco cruel, sofrido em
face de meu equilíbrio o mais íntimo, um choque que me atirou por inteiro aos braços das trevas!
Foram anos de romagem dolorosa pelos rincões inferiores, onde trevas e gemidos, uivos lancinantes
e anátemas se oferecem em catadupas apocalípticas.
Um milhão de vezes é preferível qualquer dor das de que pode ser ofertante a vida na carne!
Todas as lepras, todos os cânceres, nunca somariam em igual ao que se herda por valados tais! De
par com a turbulência física, porque há um físico, levantam-se, de dentro do ser avalanches de
monstruosas coações de ordem espiritual, moral e mental, a ponto de enlouquecer, se fosse, se para
tanto tivesse mérito o infeliz viajor de tais plagas! A loucura seria uma benção.

Não obstante tamanha investidura infernal, ainda vim de ter de perder, em futura vida, ao
objeto de todos os caminhos de minha alma. Não atribuo senão a Deus, tanto que a amava, a graça
de ter vencido a tão cruel transe. Todos os apoios de familiares e conhecidos, principalmente de
dois filhinhos que ficaram sem mãe, de nada valiam, parece que de fato não valeram em coisa
alguma. O que valeu é que eu tinha de sofrer, tinha de resgatar-me.
Passei noites à beira do rio, subi um milhão de vezes ao alto da penha, fiz mil pensamentos
escabrosos por dia; mas nunca tive coragem para atirar-me grotas abaixo, esfrangalhar-me nas
quinas rochosas, depois sumir no estrondear das águas.
No entanto, que maravilhosa era a paisagem! Naquele confim da fazenda, o estuário em que
se convertia aquela infusão de belezas, sobre o que fosse faria a alma estrugir, menos porém rumo a
coisas tétricas. As águas em revolta, desfaziam-se em estrondos e espumas, repiques e coroas
alvíssimas por cima de dorsos e lajeados milenares, indo recuperar-se ao longe, naquele espraiado
remansoso e poético, atingindo a franja sinuosa da mata virgem, por entre o que, nas épocas de
enchente, rumorejantemente se lançava.

Para berço de vida, isso sim estava bem. Nunca, porém, para túmulo do quer fosse, que isso
saberia a sacrilégio. O belo não devia ser para as coisas vãs, e menos, muito menos ainda para o
crime! A terra se testemunha como mundo embrionário em evolução, quando seus expoentes
lançam mão do bom e do belo para aquele fim que é aviltamento. Nos cimos espirituais entre ética e
estética não tem cabimento cogite-se em possíveis lacunas. Fatores entre si paralelos por força de
virtudes, deles não lança mão o homem com o fito de profanação. A ética humana em tais paragens,
é cultivar pelo amor, desenvolver pela devoção e utilizar pelo mesmo sentido santificante de vida.
No entanto, Ana fizera daquilo escárnio o seu sarcófago e a minha cela de penas e lágrimas.

Minha mente conturbada, até mesmo abalada em seus dispositivos ordinários, dera por mostrá-la a
emergir das águas, a clamar, a exigir salvamento, por meio de gemidos que se perdiam na escuridão
da noite e no cântico alegre do dia. Assim a vi e ouvi, de fato ou por suposição apenas. Levantavame,
espetava o poder de visão, aguçava os ouvidos... E tudo se perdia, de novo, nas brumas da noite
ou nos clamores do dia.
As aves, festejando a alvorada ou lastimando o pôr do sol, e os peixes a espadanar à cata de
insetos ou uns a outros, nada do que me ia pela alma sabiam. Eu curtia a minha dor, o meu tugúrio,
bem ao pé daquela natureza soberba em fragrância. Do firmamento azul não sumiram as luzinhas
piscantes; nem deixou de pender o sol; jamais faltou o passeio dos flocos gasosos pela tela azul do
céu. O céu e a terra não tomavam conta de minhas angústias! Enquanto o caudaloso rio de minhas
penas transbordava por sobre as dunas de minhas impressões recalcadas, o mundo inteiro vivia a
sua vida, o seu destino. Os programas não se confundiam, cada um valia por si.
Certo dia, penetrando cabisbaixo casa a dentro, sob o olhar triste de dois orfãozinhos que de
mim deviam desejar mais, tive pela frente a figura veneranda de Sinhá Marta, mestiça de índio e
português, cuja idade bordejava os oitenta.

— Sinhô, vê bem o que faz... Essas crianças não podem ser vítimas assim de sua fraqueza...

Permaneceu quieta por alguns instantes, temendo qualquer reação de minha parte, mas
prosseguindo, a seguir, num assomo de coragem:

— Desculpe-me, mas já é tempo de levantar a cabeça... Esse menino e essa pequerrucha,
como vê, não podem continuar assim...

Sinhá Marta tinha razão, farto estava eu de sabê-lo. Mas a vida, aquela vida foi
transcorrendo, por dias e mais dias. Aquela velhinha boa era o esteio da casa, a segurança de tudo e
todos. Vinha de servir a meus falecidos pais e ali estava, firme na sua envergadura de nobreza,
sobranceira por sobre os anos e a alvura de seus cabelos. Cedia, pouco, muito pouco, ao guante do
tempo; mas não tinha ao que apelar, como nenhum mortal tem, encarquilhando-se cada vez mais,
curvando sobre si mesma o peso do corpo, a quem tanto de obrigações atribuía.

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